São Cosme e São Damião: tradição e sincretismo dos Orixás 

 

Por  Vitor Friary

 

Na cultura Yorùbá e Fon, os gêmeos são seres abençoados, considerados uma dualidade sagrada que simboliza a fertilidade, a prosperidade e a vitória sobre a morte. O culto aos gêmeos, tanto no Benin como no Brasil, reflete a complexidade espiritual dessas figuras, frequentemente associadas à proteção e ao equilíbrio entre o mundo material e o espiritual. No Brasil, essa devoção se manifesta, em parte, na popular celebração de São Cosme e Damião, marcada pelo envolvimento de crianças e pela distribuição de doces, uma prática que lembra festividades populares como o Halloween nos Estados Unidos, mas com profundas raízes espirituais e culturais africanas.

 

Ibejì e Hoxo: Divindades Gêmeas

 

Na tradição Yorùbá, o Òrìṣà Ìbejì representa os gêmeos divinos. O nome “Ìbejì” é derivado de duas palavras: “ìbí” (parir) e “ejì” (dois), simbolizando o nascimento de gêmeos. O primeiro a nascer é chamado Táíwò, considerado o mais jovem, e o segundo é Kéhìndé, considerado espiritualmente mais velho, invertendo a lógica convencional do nascimento. Esses gêmeos são associados à proteção contra a morte prematura, à harmonia entre os planos espiritual e material e ao progresso. Como diz um antigo oriki (verso ritualístico), “Òkánlàwón, igbénijú, erelú amo mbá bí, mbá là” — Criança nobre entre as demais, se tiver você, prosperarei.

 

Na cultura Fon do Benin, os gêmeos são chamados de Hoxo, e são igualmente venerados como seres sagrados. O nascimento de gêmeos é considerado uma bênção extraordinária, com implicações espirituais que conectam a família à força vital da natureza. Se um dos gêmeos morre, ele é substituído por uma estatueta sagrada que é tratada com a mesma reverência, para que seu espírito continue a proteger o gêmeo vivo e não o leve para o além. A relação entre as mães de gêmeos e a sociedade é de grande respeito, e, em muitos casos, a mãe se torna uma figura de autoridade dentro da família e da comunidade.

 

O Sincretismo e a Festa de Cosme e Damião

 

No Brasil, o sincretismo entre as divindades africanas e os santos católicos é um fenômeno bem documentado. No caso dos gêmeos, São Cosme e Damião, médicos do astral e patronos das crianças, são sincretizados com Ìbejì. A festa de Cosme e Damião, celebrada em 27 de setembro no Rio de Janeiro, é um evento popular comparado, por alguns, ao Halloween americano, por conta da distribuição de doces para crianças. No entanto, o significado espiritual é muito mais profundo.

 

A data é marcada por promessas e agradecimentos, especialmente por mães que pedem a intercessão de Cosme e Damião para a cura de seus filhos, muitas vezes em casos considerados irreversíveis pela medicina. As oferendas de doces tradicionais como maria mole, mariola, pé de moleque, e docinhos de abóbora simbolizam a prosperidade e a doçura que os gêmeos trazem para as vidas dos devotos. O ato de distribuir doces, uma prática tão característica da festa, reflete a alegria e a abundância associadas ao nascimento dos gêmeos Ìbejì.

 

A Celebração dos Gêmeos no Benin e no Brasil

 

No Benin, a celebração dos gêmeos também é um evento de grande importância. Em Ouidah, as festividades acontecem no final de setembro, estendendo-se até a primeira quinzena de outubro. Durante essas celebrações, pratos como o feijão com azeite de dendê, a comida preferida dos gêmeos, são preparados e compartilhados. Assim como no Brasil, a festa dos gêmeos no Benin envolve invocações espirituais, danças e cânticos, tudo para celebrar e honrar os gêmeos, tanto vivos quanto falecidos.

 

O nascimento de gêmeos é visto como um fenômeno que traz prosperidade à família. Contudo, essa bênção também pode ser um desafio espiritual, exigindo que a família reverencie as divindades relacionadas a Ìbejì e Hoxo para manter o equilíbrio entre os gêmeos e seus destinos. A cultura Fon, por exemplo, acredita que os gêmeos estão conectados à floresta, onde seus “duplos espirituais” residem na forma de animais. Esse laço espiritual requer cuidado e respeito, e a substituição de um gêmeo falecido por uma estatueta sagrada é uma prática que visa preservar essa conexão.

 

A Tradição dos Gêmeos é sobre Equilíbrio Espiritual

 

Nas tradições Yorùbá e Fon, os gêmeos estão profundamente associados ao equilíbrio e à dualidade. Não se trata apenas da existência de dois seres, mas da coexistência entre forças opostas e complementares. Essa visão está presente tanto no culto a Ìbejì quanto na devoção a Hoxo, e reflete a necessidade de equilíbrio em todas as esferas da vida — material e espiritual, vida e morte, alegria e sofrimento.

 

No Brasil, essa dualidade se manifesta no sincretismo entre Cosme e Damião e Ìbejì. A alegria das crianças correndo pelas ruas em busca de doces contrasta com as preces silenciosas das mães que pedem por cura e proteção. É nesse espaço entre o popular e o sagrado, entre a tradição e a adaptação, que encontramos a verdadeira riqueza das religiões afro-brasileiras.

 

A celebração dos gêmeos, seja na forma de Ìbejì no Brasil ou de Hoxo no Benin, simboliza muito mais do que o nascimento de dois seres. Ela representa a conexão entre o humano e o divino, a vitória sobre a morte e o equilíbrio necessário para prosperar. Ao celebrarmos essas divindades, tanto nas ruas do Rio de Janeiro quanto nos altares do Benin, estamos honrando a profunda herança espiritual trazida pela diáspora africana, uma herança que continua a moldar a cultura, a religiosidade e a vida cotidiana de milhões de pessoas.

 

Babalawo Vitor Friary é Doutorando em Estudos Africanos e Sacerdote de Culto a Ifá, Voduns e Orixás no Brasil.